sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ai.

Esse doeu pra sair em sua "versão final". Depois da leitura de alguns beta-testers, resolvi fazer minhas próprias modificações, e corrigir as falhas geradas pela digitação do meu teclado que já está dando entrada no pedido de aposentadoria (já contratamos substitutos jovens e capacitados).

Quero falar com você


"É... mas como o tempo passa!" - aquela conversa de sempre.
"É..."
"Olha só quantos anos passaram desde aquele acidente!"
"Qual deles? A gente hoje em dia só sabe de acidente."
"Sabe que quando eu ligo a TV, sei que verei dois tipos de coisa: acidente e reportagens sobre nós mesmos."
"Não entendi... 'nós mesmos'?"
"Eu entendo o que você quer dizer."

Todos levantaram a cabeça. Era o primeiro Natal no qual ele se manifestava. Prosseguiu:

"Tá tudo uma bosta. Não dá pra fugir disso. Aí eles botam essas reportagens sobre culinária, sei lá, sobre os jovens ou algo assim para que não nos esqueçamos de sermos nós mesmos, não nos rebelemos. Mas eles também se enganam."
"É... Tá certo..."

Era sempre assim que acabava, por isso que não se manifestava. Ficou surpresa que o rapaz o fizesse. Preferia-o quando ele era pequeno: brincava e abria a boca para falar coisas com sentido. Agora ele faria parte do grupo que falava "d'eles", essas pessoas que ninguém sabe quem são, mas sempre se fala delas. Todos extremamente convencidos de que estão sendo enganados, inebriados por um tipo de SOMA, e ainda assim assistem novela, falam da vida dos outros e tomam café.

Já não pedia mais ao seu Querido que fosse à ceia da sua família. Ficava lá por pouco tempo mesmo, presente só para não magoar a velhice de ninguém. Não podia mais com esses papos de entendidos. Ela era burra, irônica, e alienada.

Correu a mão pela testa para limpar o suor que não existia, mas estava ali. Como foi penoso ficar lá. Entrou no carro e quando estava dando a partida, seu celular começou a tocar. Olhou a identificação de chamada: sua mãe. Ah, não. Ele já estaria, a essa altura, preparando um incrível jantar no quarto e sala modesto em tamanho, mas bem equipado pelos dois. Tocou de novo o celular. Tirou-lhe o som, não queria atender. Chega de boa ação natalina.

Agradeceu por ser Natal. Pôde viajar à sua maneira por um caminho do tamanho que bem entendesse. Idas e vindas em um espaço inabitado, eternamente naquela noite, sem sombra de piedade ou tal-amor. Ondas vão e vêm e não se sabe porquê. Há quem diga que há uma ordem física, mas complexa demais para o estudo humano, uma ordem realmente caótica. Outros falam de deuses. Não é a mesma coisa? Ela acreditava nele, e em quase mais nada. Isso que importava. É impossível viver sem acreditar, e, no fim, é pura fé mesmo. A pedância dos Homens fê-los crer que é possível explicar-se. Por isso gostava das crianças. Gostava dele por isso também. Sempre soube que ele acreditava nela porque precisava disso. Queria estar com ela, e se duvidasse não poderia. O mesmo valia para ela, claro. Essa é a face da verdadeira confiança. No fim, tudo é fruto de uma pirraça infantil. Não há convencimento real. Nossa lógica é, encaremos, emocional.

Deu-se por Querida e acordou. O caminho acabara e o elevador foi rápido. Os braços dele bem sabiam como ela estivera sozinha e envolveram-na como da vez primeira. Quando o único sentido se fez, puderam fazer seu Natal.

Não sabia se no fundo ele era tão desacreditado quanto ela. Com certeza era influcienciado, é inevitável. A grande questão de perceber-se alieando é a consequência imprevisível. Depende, quem sabe, de uma pré-disposição, ou de outra inexplicação. É bem possível que tudo se revele grandioso, porque a surpresa de ser diante de tamanho vazio teatral é bela. Tudo podia não ser. Todavia, é possível que o ar fique denso e seco, o corpo pese e o metabolismo se inverta. É como estar envolto em uma gelatina amorfa e quente.

Ela tinha um ar triste, mas não era o corpo às avessas.

No dia seguinte ligou para sua mãe. Não podia fingir, afinal, que nunca soube da chamada perdida. Por um instante que demorou a passar temeu pela sua alienação. Por que mamãe teria insistido tanto em ligar se cinco minutos antes estiveram juntas? Temeu porque se encolheu ao pensar na possibilidade daquela não mais ligar, talvez sua velhice cansasse de estar. Sua alienação parecia fugir das suas mãos e a tal gelatina dissolvia-se em nada. Era medo de ver que não podia fugir de uma realidade - paralela a tudo - que o Humano criara. É bem verdade que não gostava da gelatina, não se sentia bem, mas com ela não havia apego, pelo menos. Não com certos laços que dão medo. Dão medo e fazem chorar, só.

"Oi, filha!"