sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Eis a minha religião

... a conjectura da união infinita de aquários

Nasceu, diz-se, um peixe que podia pensar, no sentido mais humano da coisa. Gastava seu tempo pensando, e acreditava que assim estava mais próximo da existência correta que seus familiares "irracionais".

Um dia, um familiar querido morreu. Depois do abatimento pela sensação de perda, reparou que os outros peixes não perceberam a magnitude daquele acontecimento. Entendeu, como que numa confissão que a Natureza lhe fazia: como aquele, muitos já tinham vindo e ido, como se todos nada fossem. Ele, um dia, também nada seria.

Nesse mundo de crueldade pisciana nada astrológica, muitos já tinham vivido, copulado, sido importantes para seus familiares, e hoje... hoje não havia rastro deles! 

Espantado com tal conclusão, passou a atentar às outras curiosidades do dia-a-dia. Ateve-se a uma em especial: sua alimentação. É, bem aquilo que fazia impulsivamente todos os dias, assim como seus amigos-peixes irracionais. Exatamente uma das pequenas coisas que o faziam, ainda, peixe.

Reparou, intrigado, o fato de que todos os dias surgia comida por aí. Estranho era que a chegada da refeição era marcada por um fenômeno natural: as cores do infinito mudavam, e surgiam formas engraçadas.

Ah sim! "Infinito" foi como resolveu chamar o limite do seu ir e vir, da sua percepção normal. Não significava o sem-fim. Infinito era o que havia além do que ele poderia alcançar. Além de até onde conseguia nadar. As imagens vindas de lá eram distorcidas, tristemente indecifráveis. Não esperava ter explicações lógicas obvias para o além. Provavelmente não cabia à sua existência dar-se conta daquilo (quanto mais compreendê-lo), assim como não era naturalmente arquitetado que seu nível de consciência fosse o que veio a ser.

Algo de diferente acontecia naquele Infinito. Fosse o que fosse, lhe permitia viver. Peixe sabia disso, e temia que Aquilo que lá se mexia e lhe dava o necessário para a subsistência se esquecesse dele, ou pior: parasse de gostar dele. Deu-Lhe um nome, que não "Aquilo", pois chamar tão banalmente uma coisa que lhe era tão vital parecia uma heresia. Chamou de "Homem".

Homem nunca falhou. Peixe morreu antes que lhe faltasse comida. Ele não foi o único.

                       ----------------

Nasceu, diz-se, um Homem capaz de estudar a si próprio, e investigar a Natureza. Contemplava o Infinito desejoso de respostas.

Chamava de Infinito aquilo que parecia fugir-lhe à compreensão; justamente pela forte intuição de que não era o planejado da Natureza ter o além ao alcance da percepção humana.

O Homem deu o nome de Deus àquilo que fazia as partículas subatômicas permanecerem unidas, os buracos negros se formarem  - e manterem, quem sabe, coesas as galáxias -, as estrelas nascerem, e o mais importante de tudo... Todos esses fatos serem tão estáveis e duradouros comparados ao seu tempo de vida que pareciam-lhe eternos. Ah, a eternidade...

Morreu sem que Deus faltasse um dia sequer. Ele não foi o único.

                       ----------------

Nasceu, diz-se, um Deus capaz de...

Chamava de Infinito...

Deus deu o nome de ...

Morreu sem que ...

                       ----------------

Esses infinitos aquários encaixados, com um nível comum a todos, e com limites exteriores se expandindo sem fim, talvez sejam movidos por um único e comum elemento. A energia que faz as partículas permanecerem juntas, o Homem alimentar o peixe, etc.

Há, com certeza, quem após isso possa dar prontamente um nome carregado de clichê a essa energia, mas que talvez seja interessante adotar: Amor. Nenhum caso particular chamado amor, mas o caso geral dele: o Sem-Porquê, extremamente passível de ser confundido com o Acaso, ou com a ordem no caos.

É uma teoria não verificável, uma questão de fé. A mim, pelo menos, ela leva a buscar outros níveis de consciência na esperança de ter uma visão mais completa, mas ainda não exotérica do que eu chamo vida.


E é com um tom de reencontro com o blog, que encerro essa quase Homilia.

4 comentários:

fabiana disse...

Boa forma de voltar!
Engraçado que eu costumava pensar exatamente sobre esse assunto, mas a minha analogia era de uma formiga com um gigante.
Não desapareça!

Felipe Drummond disse...

a análise é muito legal, bem construída, bem conduzida e bem escrita, mas o ponto mais interessante levantado sobre toda essa questão, que se reveste das opiniões e crenças mais personalíssimas possíveis, daí a impossibilidade de críticas ao conteúdo, é o seguinte: "é tudo uma questão de fé".

confirmo a cada dia minha idéia de que deus ou o congênere é algo como "intra-racionalizável", pois as premissas sobre as quais se pensa ele (Ele, para quem se ofender com o minusculo) muito dificilmente podem se estender por meio do discurso a outro indivíduo, de forma que pensá-lo só leva a conclusões perfeitamente válidas para quem pensa.

não quero, porém, um desestímulo a quem escreve e publica sobre ele, afinal, tudo bem construído, na pior das hipóteses, acaba sendo um bom exercício de filosofia.

um abraço, quero vê-lo escrevendo mais. (e sobre amor, à la clarice. me amarro)
amém.

Giant in a glasshouse disse...

Discordo do Drummond. É sempre válido expor seu ponto de vista sobre qualquer assunto, por mais subjetivo que ele seja. Nunca se sabe o que daquele ponto de vista o leitor poderá aproveitar para o seu próprio. Essa é toda a beleza do diálogo, que pode se estabelecer até mesmo apenas na mente do leitor, entre a visão dele e a sua, expressa no texto.

Conrado disse...

Caraca cara,

Novamente ficou muito bom esse texto.
Me surpreende como você escreve bem!

Por assim dizer, no mínimo interessante a sua analogia do peixe-homem-Deus. Nunca havia pensado assim claramente e sem dúvida me abre uma nova forma de pensar. =D

Abraço